O MARIDO
Uma
semana em casa. Uma longa semana em casa. Se a mulher perceber que estou
descansando arruma alguma coisa para perturbar. A criança está inquieta, as aulas no formato
on-line são horríveis. Os alunos não sabem o que fazer, os professores não
sabem o que fazer, a mulher só grita tentando ensinar a lição, prefiro
ausentar-me. A escola manda todos os dias intermináveis lições para provar que
poderemos pagar as mensalidades tranquilamente porque mesmo em casa as crianças
aprendem. A vida do adolescente não mudou muito porque só ficava trancado no
quarto o dia inteiro. Fui participar de uma reunião de cueca, (essas
intermináveis reuniões que poderiam ser reduzidas a um e-mail) e a criança no auge
da inocência entrou no quarto e perguntou onde estava o resto da minha roupa.
Infelizmente o microfone estava ligado e meus colegas tiveram uma crise de
risos. Meu chefe permaneceu sério. Mas instintivamente sabíamos que estava
passando pelas dificuldades, certa vez escutamos a esposa dele gritando no
fundo.
Os clientes acreditam que trabalhando em casa não tenho direito a horário de almoço, descanso
ou fim de semana. E a maioria acredita que não faço nada.
Estou
inclinado a voltar para o escritório a fim de manter minha sanidade mental. O vírus
não é nada perto da minha esposa. Espero que voltemos a rotina normal em pelo
menos 40 dias.
A CRIANÇA
Estou
feliz porque mamãe e papai estão em casa comigo, e agora não preciso mais ir
para a escola. Mas a escola acredita que mesmo em meio uma pandemia é muito
importante fazer dever de casa. Mas eu não aguento mais. Minha mãe perguntou
quanto é dois e dois, quando eu disse vinte e dois ela começou a gritar como
uma louca e disse que iria sumir. Eu escondi debaixo da mesa enquanto ela ficou
gritando por quase uma hora. A professora queria me dar falta porque assisti
aula com fantasia de Batman. Não tem graça ficar em casa. Papai passa o tempo
todo com o celular. Se eu tentar entrar no quarto do adolescente serei expulso.
O único que me entende é o cachorro.
O ADOLESCENTE
Só posso
estar sendo castigado pelo fato que ter que conviver vinte e quatro horas por
dia com essas pessoas que a sociedade chama de família. Eu vou surtar. Esse pirralho
que não tem nada para fazer quer entrar no meu quarto para conversar. Eu nem
gosto de conversar e não tenho mais idade para brincar. Ninguém nessa casa me
compreende. O velho fica fingindo que está aqui, mas a alma dele tá no
trabalho, ou então olhando mulheres na internet, escondido dela é claro. Até o
cachorro está ficando louco. As vezes late como se fosse um lobo, bizarro. Os professores
acham que não tenho nada mais interessante para fazer ao não ser lição de casa.
Abro o link da aula em uma tela e um seriado na outra. Ninguém da casa sabe
porque eu uso fone de ouvido. Não sou obrigado a estudar.
A MULHER
Achei
que seria férias. Passar mais tempo em família, conversar, ter uma alimentação saudável.
Mas a verdade é que trabalhar em casa é enlouquecedor. Tenho agora múltiplas tarefas.
Acordar as crianças, preparar o café da manhã, já pensar no almoço. Limpar a
casa porque é impossível concentrar com tanta bagunça, responder e-mail,
protocolar processos. Já é hora do almoço. O homem da casa acha que não tenho
nada para fazer porque além de tudo arrumou um cachorro pulguento para fazer
companhia as crianças. Um maldito cachorro para fazer cocô, xixi, comer minhas
plantas, estragar meus sapatos. Abri o portão para ver se o cachorro fugia, mas
o miserável ficou imóvel. Agora estou lavando roupas todos os dias, passo álcool
em gel em cada canto da casa, preciso vistoriar os meninos para lavar as mãos. Ajudar
nas tarefas escolares, sou muito boa nisso. Mas quem mais dá trabalho em casa é
o homem. Precisou ir ao supermercado porque os suprimentos estavam acabando. Quando
chegou em casa largou os sapatos com possíveis contaminações na sala, não
queria tirar a roupa da rua e colocar no cesto que deixei na garagem, disse que
eu estava exagerando. Provavelmente encontrou conhecidos na rua e ainda pegou
na mão. Não quer brincar com as crianças, não lembra de colocar comida pro
pulguento. Não quer lavar as vasilhas. Tem profundas dificuldades de jogar
embalagens na lata de lixo, ou de repor o papel higiênico. Consegue tirar a
pasta dental do lugar, deixa cueca no banheiro e toalha na cama. Fica andando
por aí com celular na mão fingindo que está trabalhando. Eu vou fingindo que
acredito, mas já clonei o celular dele. E quando tiver uma prova de alguma
sacanagem procuro um advogado que arranque até as cuecas dele no divórcio.
O CACHORRO
Eu estava
perdido quando meu dono me encontrou. Ele me livrou de uma vida entediante. Meu
dono é muito bom e me ama muito, me dá comida, água. Minha dona também me ama, inclusive
colocou meu nome de Pulguento, fica o dia todo me chamando. Outro dia em
retribuição ao seu amor ajudei ela com o jardim. Ela gostou tanto que ficou o
dia todo falando meu nome. Ela faz umas expressões estranhas quando está feliz
comigo.
Outro
dia o portão estava aberto, fui na rua dar um passeio. Quando voltei estava fechado.
Deitei e fiquei esperando alguém abrir o portão. Meu dono chegou e ficou bravo
porque a mulher dele tinha aberto o portão para eu passear sozinho.
Tenho
um amiguinho que brinca comigo o tempo todo. Aí minha dona chama ele para fazer
obrigações. Não sei o que é isso, mas deve ser muito legal porque ele sempre vai
correndo. Essa semana eu descobri que tem outra pessoa na casa, ele é o
adolescente. Minha dona gritou para ele sair do quarto e quando saiu ele pisou
no meu cocô. Ele não ficou bravo porque também me chamou de pulguento. Espero que
eles fiquem comigo para sempre.